A Carta
Desejo e dissimulação movimentam este clássico de William Wyler com Bette Davis.
C&N
Em 1940, Bette Davis estava com 32 anos. Parecia ter mais, as mulheres envelheciam com maior rapidez do que agora. Além disso, ela nunca foi o protótipo da beleza. Mas já era uma estrela e uma atriz consagrada com dois Oscars dessa categoria por Perigosa (1935) e Jezebel (1938). Em ambos os filmes e em quase toda a carreira encerrada pouco antes de sua morte em 1981, ela passou a ser a personificação da maldade, da mentira predatória sobre seres próximos. Claro, houve exceções, mas em todos os filmes que fez, Ruth Elizabeth Davis (seu nome de batismo) surgia como mulher determinada para o bem e para o mal. Assim foi, por exemplo, nas duas ocasiões em que interpretou a rainha Elizabeth I da Inglaterra (Meu Reino por um Amor em 1939 e A Rainha Tiranaem 1955), na confusão de uma família de poucos recursos em A Festa de Casamento (1956) e em O Que Aconteceu com Baby Jane? (1962), de Robert Aldrich.
Não obstante certa fama de voluntariosa, alguns diretores trabalharam com ela em mais de um filme. William Wyler(1902-1981) fez três, todo para a Warner onde Bette era a estrela maior. Merecidamente, um dos mais respeitados cineastas de toda a história de Hollywood, esse europeu nascido na antiga Alsacia que sempre se saiu bem em todos os gêneros (suspense como Horas de Desespero e faroestes da lavra de Da Terra Nascem os Homens), era valorizado também pela incrível capacidade de extrair o melhor de seus intérpretes. Daí alguns terem obtido prêmios por atuações em seus filmes. Caso da própria Bette em Jezebel, de Greer Garson emRosa da Esperança, Audrey Hepburn em A Princesa e o Plebeu e Charlton Heston por Ben Hur, todos agraciados com o Oscar, e da dupla formada pelos então estreantes Terence Stamp e Samantha Eggar em O Colecionador, laureada no festival de Cannes.
A Carta (The Letter) foi o segundo longa de Wyler com Bette. Ela é Leslie Crosbie, a esposa de Robert Crosbie (Herbert Marshall), um rico agricultor na antiga possessão inglesa de Singapura. No começo, Leslie mata Hammond, um amigo também ocidental. Sua alegação é que ele chegou inesperadamente em sua casa e tentou violentá-la. Mas, no curso da investigação, o advogado Howard (James Stephenson), também amigo dos Crosbie, fica sabendo que a viúva Hammond (Gale Sondergaard) tem uma carta de Leslie convidando o falecido marido para visitá-la e deixando claras as suas intenções amorosas. A chantagem é estabelecida.
A base do filme é uma peça de W. Somerset Maughan (1874-1965), o popular escritor inglês nascido na França. Da sua obra, surgiram mais de 130 produções para a TV e o cinema, sendo que A Carta já tinha sido levada à tela em 1929 por Hollywood, com a americanaJeanne Eagels e Herbert Marshall fazendo o amante assassinado, e em 1931, na Espanha, com Carmen Larrabeiti. Na versão de Wyler, a origem teatral fica disfarçada por uma narrativa ágil, como todas aquelas feitas pelo cineasta mesmo quando trabalhava com enredos intimistas (O Colecionador, Horas de Desespero). Em suas mãos, a câmera não perde tempo, expõe rapidamente o ambiente o fato principal. Caso aqui do início em que movimentos panorâmicos mostram o cenário externo da propriedade rural e os seus nativos.Repentinamente a tranquilidade das cenas é rompida por tiros. A sequência em que Leslie dispara seguidamente é antológica, em poucos minutos já transmite o clima de tensão que se estabelece, bem acentuado pelos acordes da música de Max Steiner e pelafotografia em preto e branco de Tony Gaudio. O diretor também é hábil para dimensionar as diferenças de classe social e étnicas que existiam naquele contexto de colonização. Não são necessárias palavras, apenas imagens.
Hoje, a personagem de Leslie perde convicção nas primeiras explicações. Isso porque o espectador atual sabe que dificilmente podeesperar bondade e conduta virtuosa de uma personagem vivida por Bette Davis. E aqui, a dissimulação e a ausência de escrúpulos vão, gradativamente, se tornando evidentes pelos olhares de alguns empregados e por ela mesma. A grande atriz só perde impacto quando contracena com Gale Sondergaard (1899-1995). Essa americana de origem sueca que viu a sua carreira ser truncada pela famosa “caça as bruxas” movida pelo senado americano por volta de 1950 contra artistas de esquerda, mesmo sem abrir a boca tem uma presença fantástica, eivada em rancor e fatalismo.
Gale vive uma eurasiana. Os rígidos códigos de moral que imperavam em Hollywood não permitiram a personagem aparecer como umanativa autêntica e também reprimiram o final original da peça. Uma adúltera e assassina como Leslie, no cinema americano de então, jamais terminaria sem punição. Porém, essas alterações em nome das hipócritas regras de moral e bons costumes não empanam a densidade luxuriante e a beleza de A Carta, um grande clássico.
Alfredo Sternheim é cineasta, jornalista e escritor.
A Carta (The Letter – Estados Unidos - 1940 - 95’) Direção: William Wyler Com: Bette Davis, Herbert Marshall, James Stephenson, Gale Sondergaard, Bruce Lester, Frieda Inescort, Victor Sen Yung, Doris Lloyd, Willie Fung, entre outros.
DVD Menu interativo - Seleção de cenas Tela: Fullscreen (4.3) Áudio: (2.0) Idioma: inglês Legenda: português
Distribuição: Classicline
Alfredo Sternheim
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